segunda-feira, 9 de maio de 2011

O Domingo sangrento em Bagdá

Por Nélio Azevedo
Dezesseis de setembro de 2007, aproximadamente 12:00, Praça Nisour, Bagdá, Iraque. Era um dia quente e úmido, com a temperatura atingindo os 38 graus. O comboio fortemente armado da Blackwater entrou no congestionado cruzamento do distrito de Mansour, na capital iraquiana. Esta seção da cidade, antes de alto padrão, ainda apresentava butiques, café e galerias de arte que lembravam dias melhores.
A ameaçadora caravana consistia em quatro grandes veículos blindados modelo “Mamba” (cobra mais venenosa da África), de fabricação sul-africana, com metralhadoras de calibre 7.62 montadas na parte superior.  Para a polícia iraquiana, já se tornara parte corriqueira do seu dia de trabalho interromper o tráfego para abrir caminho para a passagem dos vips americanos, protegidos por soldados particulares fortemente armados. Com o argumento de que os oficiais americanos estão ali para prevenir um ataque de insurgentes contra comboios americanos. No entanto, era mais frequente a polícia iraquiana fazer isto para preservar a segurança de civis que se arriscavam a ser fuzilados apenas por se aproximarem demais das vidas valiosas no seu país – as dos oficiais estrangeiros da ocupação.
Quando o comboio da Blackwater entrava na praça naquele dia, um jovem iraquiano estudante de medicina, chamado Ahmed Hathem al-Rubaie, dirigia o sedã Opel, branco da família com a mãe de passageira. Tinham acabado de deixar o pai, Jawad, um patologista de sucesso, próximo ao hospital onde trabalhava. Seguiram então o seu caminho para resolver algumas tarefas, como buscar os papéis de inscrição na faculdade para a irmã de Ahmed. O plano era realizar o que precisavam fazer e voltar mais tarde para buscar Jawad. Num lance do destino, encontraram-se presos no trânsito próximo à praça Nisour. Os rubaies eram muçulmanos devotos e estavam em jejum observando o mês do Ramadã. Ahmed era poliglota, fã de futebol, e estava no terceiro ano da faculdade de medicina, onde estudava para se tornar cirurgião. A medicina estava no seu DNA. Como o pai, a passageira de Ahmed naquele dia, a mãe também era médica – uma alergista. Jawad diz que a família poderia ter deixado o Iraque, mas acreditava que eles eram necessários no país. “Dói-me quando vejo médicos abandonando o Iraque”, disse ele.
Ali Khalaf Salman, um policial de trânsito iraquiano de serviço na Praça Nisour naquele dia, recorda-se vivamente do momento em que o comboio da Blackwater entrou no cruzamento, obrigando a ele e os colegas a prontamente interromper o tráfego. Mas quando os Mambas entraram na praça, o comboio subitamente deu meia-volta numa manobra-surpresa e prosseguiu na contramão numa rua de mão única. Enquanto Khalaf observava, o comboio parou abruptamente. Ele diz que um enorme homem caucasiano de bigode, posicionado acima do terceiro veículo do comboio da Blackwater, começou a disparar sua arma “a esmo”.
Khalaf olhou na direção dos disparos, na Rua Yarmouk, e ouviu uma mulher gritando: “Meu filho!” O policial correu em direção à voz e encontrou uma mulher de meia-idade dentro de um veículo abraçando um homem de vinte anos que fora atingindo na testa e estava coberto de sangue. “Tentei ajudar o jovem, mas a mãe o abraçava com tanta força”, recorda-se Khalaf.
Outro policial iraquiano, Sarban Thiab, também correu até o carro. “Tentamos ajuda-lo”, disse Thiab. “Vi que o lado esquerdo da cabeça dele fora destruído e a mãe gritava: “Meu filho, meu filho! Ajudem-me, ajudem-me!”
O policial Khalaf lembra-se de olhar para os atiradores da Blackwater: “Ergui o braço esquerdo bem alto no ar para tentar sinalizar para o comboio que parasse de disparar”. Ele diz que pensou que os homens fossem cessar o fogo, já que ele era um policial claramente identificado. O corpo do jovem ainda estava no banco do motorista do veículo automático e, enquanto lá estavam Khalaf e Thiab, o carro começou a se adiantar, possivelmente porque o pé do falecido ainda repousava no acelerador. Posteriormente, os guardas da Blackwater disseram que abriram fogo contra o veículo porque este acelerava e não obedeceu à ordem de parar; uma alegação contestada por diversas testemunhas. Fotos aéreas da cena mostraram depois que o carro nem sequer havia entrado na rotatória quando foi alvejado pela Blackwater, enquanto a reportagem do New York Times revelava que “O carro no qual as primeiras pessoas foram mortas não chegou a se aproximar do comboio da Blackwater até que o motorista iraquiano tivesse sido baleado na cabeça e perdido o controle do veículo”. Thiab explicou: “Tentei gesticular para que os atiradores entendessem que o carro estava se mexendo sozinho e que nós estávamos tentando pará-lo. Estávamos tentando tirar a mulher de lá, mas tivemos de correr em busca de abrigo”.
“Não tirem por favor!” Khalaf lembra-se de ter gritado. Mas enquanto ele estava lá de mãos erguidas, Khalaf diz, um atirador do quarto veículo da Blackwater abriu fogo contra a mãe abraçada ao filho e matou-a diante dos olhos de Khalaf e Thiab. “Vi partes da cabeça da mulher voando diante de mim,, estouradas”, disse Thiab. “Eles imediatamente abriram fogo pesado contra nós” Em poucos momentos, segundo Khalaf, foram tantos os disparos feitos contra o carro a partir de “metralhadoras de grande calibre” que o veículo explodiu, mergulhando os corpos no interior em chamas, derretendo a sua carne até transformá-la numa coisa só. Cada um dos quatro veículos deles abriu fogo pesado em todas as direções, balearam e mataram todos dentro dos carros diante deles e as pessoas que estavam na rua. Mais tarde, quando os investigadores americanos perguntaram-lhe porque jamais abriu fogo contra os homens da Blackwater, Khalaf disse-lhes: “Não estou autorizado a disparar, e o meu trabalho é cuidar do trânsito”.
As vítimas foram mais tarde identificadas como Ahmed Hathem al-Rubaie e a sua mãe, Mahasin. O pai de Ahmed, Jawad, tem um irmão, Raad, que trabalhava num hospital próximo para onde as vítimas do tiroteio estavam sendo levadas. Jawad pensou que o tiroteio era de um confronto e, é claro que não lhe ocorreu que a sua esposa e filho pudessem ser vítimas do tiroteio.
Raad foi até o necrotério, e o pessoal responsável lhe dissera que haviam recebido dezesseis corpos e mais de vinte feridos depois do tiroteio daquele dia. Foram todos identificados, ou eram identificáveis, com exceção de dois. Dois corpos completamente carbonizados... Foram colocados em sacolas pretas de plástico. Raad suspeitou que pudessem ser Ahmed e Mahasin mas, não queria acreditar que pudesse ser verdade. Ele e a esposa foram até a Praça Nisour e encontraram um sedã branco muito queimado. A placa não estava no veículo, mas a esposa de Raad encontrou um decalque dos números na areia. Raad ligou para Jawad e começou a ler os números da placa, confirmando seus piores temores.
Jawad fez o reconhecimento dos corpos, sua esposa foi reconhecida pela arcada dentaria e seu filho pelos restos de um dos sapatos. Ao todo foram contadas cerca de quarenta perfurações no veículo e nunca voltou para recuperá-lo porque queria que ele servisse de marco que relembrasse o doloroso evento causado por pessoas que, supostamente, vieram lhes proteger.
Depois que o veículo de Ahmed explodiu, disparos contínuos vieram da praça, enquanto as pessoas fugiam tentando salvar as próprias vidas. Além dos atiradores da Blackwater a bordo dos quatro Mambas, testemunhas dizem que disparos vieram dos helicópteros Little Bird da empresa. Os helicópteros balearam e mataram o motorista de um fusca e feriram um passageiro que escapou rolando para fora do carro enquanto o tiroteio indiscriminado continuava.
Segundo relato de outro oficial iraquiano, Hussam Abdul Rahman, outras pessoas tentavam fugir de seus veículos e se tornavam alvos, quem quer que saísse dos carros era alvejado imediatamente.
Mulheres e crianças saltavam dos carros e rastejavam para a rua tentando fugir das balas. O advogado Hassan Jabar Salman, que foi atingido quatro vezes nas costas, conseguiu se salvar, viu quando uma mãe desceu de um micro-ônibus e saiu correndo atrás de seu filho de dez anos, ambos foram mortos, atingidos na cabeça.
Mohammed Abdul Razzaq e o filho de nove anos, Ali, estavam num veículo imediatamente atrás do carro de Ahmed, as primeiras vítimas, eram seis pessoas no seu carro, quatro crianças estavam no banco de trás. Os soldados da Blackwater gesticularam para que ele parasse, no que foram prontamente obedecidos. Logo depois que o carro da frente foi destruído, seu carro também foi atingido por cerca de trinta balas, a parte da frente do veículo foi pulverizado, alguns disparos entraram pelo pára-brisa e atingiram a cabeça de seu filho Ali.
O tiroteio durou uns quinze minutos, só foi finalizado quando um dos guardas da Blackwater apontou sua arma para o outro que estava atirando quase dando início a um tiroteio mexicano, dentro de algumas horas, o nome da Blackwater se tornou conhecido por todo mundo, conforme a notícia do massacre se espalhava. A Blackwater alegou que foram atacados de forma violenta e que a sua reação teria sido apropriada de acordo com a lei, usaram a força para proteger cidadãos americanos numa zona de guerra e que os civis supostamente atingidos eram na verdade inimigos fortemente armados.
Em menos de 24 horas, os assassinatos da praça Nisour acabariam causando a pior crise diplomática entre Washington e Bagdá e, esses soldados terceirizados a peso de ouro ainda iriam se envolver em mais seis eventos em que civis seriam mortos sem que nada acontecesse aos assassinos que são protegidos por leis que lhes garantem impunidade como agentes do Departamento de Defesa dos Estados Unidos.  

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