sábado, 27 de novembro de 2010

Eduardo Guimarães: A cor da tragédia no Rio

Por Eduardo Guimarães

Sábado, fim da manhã, dou uma escapada do escritório. Fui trabalhar em um dia em que costumo dedicar ao descanso porque precisava “preparar” a viagem de negócios que começo a fazer no dia seguinte.

Preciso almoçar. Café e cigarros, ininterruptamente – consumo um e outro sem perceber, quando trabalho ou escrevo –, fizeram-me cair a pressão.

O bar serve uma das feijoadas mais honestas da região da Vila Mariana. De carro, chego lá em 5 minutos.  Gasto mais cinco esperando pela comida e mais dez para comer. Antes da uma estarei de volta.

Meu escritório está na região há quase 15 anos. Vários conhecidos freqüentam o estabelecimento em que matarei a fome. Ao chegar lá, cumprimentam-me e me convidam a sentar à mesa repleta de garrafas de cerveja vazias.

Hesito. São pessoas que têm por costume fazer comentários que me desagradam. A educação, porém, fala mais alto e aceito. Encaro a turma que têm os olhos injetados pelo álcool.

Alguns dos homens, estando todos na mesma faixa etária que eu, mencionam a entrevista com Lula e começam a fazer piadinhas próprias da mentalidade política e ideológica que infesta a parte de São Paulo em que vivo.

Permaneço impassível e calado. Percebem que não estou achando graça. Um deles, menos grosseiro, resolve mudar de assunto:

– E o Rio, hein! Que tragédia!

Percebo que é outro tema que não vai prestar e me abstenho de comentários. Dedico-me à excelente batidinha de limão que servem ali.

Um outro decide escancarar a bocona: “Sabe qual é o problema do Rio?”. Percebendo que vem pedrada, mas já começando a me irritar, pergunto qual seria o “problema do Rio”.

– Pretos, cara. Notou que são todos pretos?

– Todos, quem, cara-pálida?

– Todos. Bandidos, moradores da região. Tudo preto. Esse é o problema do Rio.

Reflito, antes de responder. Ao menos em uma coisa esse demente tem razão: a tragédia carioca tem cor.

Realmente, bandidos e população atingida por eles são negros em expressiva maioria. Então respondo:

– Mas a culpa não é deles, é sua. São racistas como você que fizeram com que mesmo depois de mais de um século do fim da escravidão os negros continuassem mergulhados nessa tragédia…

– Mas…

– Aqueles traficantes quase todos negros, um dia foram crianças que se inebriaram pelo poder que os bandidos exercem sobre essas comunidades.

A mesa com seis homens de meia idade fica em silêncio, perplexa com o que acabara de ouvir. Levanto-me, vou até o caixa, pago pela comida que não comi, subo no carro, sem me despedir de ninguém, e vou embora sem almoçar.

Já não havia mais fome.

Levo comigo, porém, uma certeza: a tragédia no Rio tem cor. Existe por conta dessa cor.
Aquelas populações, pela cor da pele, foram mantidas em guetos miseráveis, longe das preocupações dos setores exíguos e preconceituosos da sociedade que fingem que a culpa é dos governantes.

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